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Saudade de rio

Popopopóóó...
Lá vai o barco, descendo o rio. Deixando às margens, o banzeiro a encostar na areia. A criança cansada do dia e queimada de sol, encosta o queixo na borda de madeira lascada, da popa do barco. Fica olhando o movimento que o motor vai formando na água, atrás dele. Parece guaraná gelado, sendo servido num grande copo. A menina olha a água como que enfeitiçada, querendo entender como ela pode ter aquela cor. Ao redor dela, o verde da floresta, as palmeiras, e as grandes e soberbas, Castanheiras do Brasil. As rainhas da floresta! Tão imponentes,  dentro daquele verde esplendoroso das matas. Não sabe explicar, mas aquelas árvores lembram a beleza de sua mãe. Bonita, grande, formosa, que chama tanto a atenção.
Antes de subir no barco, tomava banho com as primas no igarapé de águas geladas, ouvia o canto dos pássaros ao longe, e ele ainda entoa no seu lembrar. Não sabe dizer o nome de nenhum deles, mas sabe que eles estão ali nas copas das árvores. A avó  brinca de assobiar, conhece os passarinhos, e ela, quando está no ônibus indo pra escola, gosta de cantar dentro da cabeça, e pensa que há um passarinho dentro dela também. Olha para o rio, sem cansar. Vai estar sempre ali pra ela. Nesse momento, nada mais importa, só o rio. 
O céu é sempre azul, com enormes nuvens brancas, que sao um bálsamo para a cidade. Sem elas, seria difícil suportar Manaus. 
- É calor demais -  diz a mãe, usando uma boa desculpa pra manter os cabelos das filhas curtinhos.

Mas é no banho de rio, que as meninas entendem o que é a beleza da terra em que elas nasceram. Para que xampu se os cabelos ficam lindos e macios depois de vários banhos de igarapé? O que faz também a menina lembrar, que certa vez, em mais um dia de barco na sua infância,  viu uma sereia!
A sua posição era a mesma daquela do queixo na popa do barco, cansada do sol, e das brincadeiras na água, ela nao sabe dizer se o que via era real. Uma mulher de longos cabelos negros, estava no meio do rio, abraçada a um homem. Não havia pedra, nem canoa, era só a mulher de longos cabelos lisos e um homem... era muito criança pra entender o que eles faziam ali. Terá sido uma ilusão? Mas a irmã também estava olhando, a mesma cena! 
Não falaram nada uma com a outra naqueles dias, só muito tempo depois de crescidas: 
- Uma vez eu vi uma Iara, uma sereia... 
- Tu também viu?! Falara a irmã com olhos arregalados.
Assim sao as coisas da terra delas, mágicas. Ou pelos menos, assim era na cabecinha sonhadora das meninas.

Quando ela cresceu, foi trabalhar com  gente da mata. No meio da floresta. Rio, mato, madeira, bicho. Lua e sol, nuvem e chuva. Canto da mata, que ela nunca cansou de ouvir... jacaré e peixe boi, tartaruga, bicho preguiça, pirarucu... cupuaçu, tapioca, acaí, café, pé de moleque, farinha. Gostava de acompanhar as mulheres que torravam a farinha, debaixo de um sol de lascar, num tacho gigantesco! Ia com os homens colher macaxeira, mas a maior alegria, era quando pulava com as crianças no rio. Ali sim, era seu lugar! Desde menina. Quando o sol refletia na água e ela podia ver seus pés ali dentro, flutuando no embalo do rio. E as crianças, brincando de mergulhar, mais pareciam patinhos com a cabeca dentro daquela coisa fluida, quase sobrenatural, que é o rio. O rio!! 
O sol vai indo embora, abaixando no horizonte alaranjado... A mulher da casa, lhe oferece flor colhida ali, no quintal. Nao quer ir embora, mas tem que ir para outra comunidade. No mesmo rio, do outro lado. A rabeta, faz um popopopó agora mais rápido que o barco da infância. 

O homem pega o violão com apenas três cordas, está quebrado, como tudo naquela casa simples e feliz, mas faz música. As  pessoas conversam, um friozinho depois de uma chuva, chega de leve, e a lua está no céu, cheia e enorme. Ela vai tomar banho na varanda do flutuante, de cuia, levando um sabonete barato nas mãos. Olhando a lua, e seu reflexo no rio. Molha os cabelos, nao precisando de xampu... nao precisa de mais nada! Se sente parte daquele ambiente, como se fosse aquela árvore na beira do rio, a flor da vitória régia, o reflexo da lua, a índia que carrega o filho no balaio, a cunhantã que pinta o corpo com urucum, ou o curumim que vai caçar com a tribo. 

Ela faz parte daquilo, desde menina e ninguém tira isso dela.  


Comentários

  1. Lindo texto e tão real. Cada detalhe nos reporta ao lugar descrito. Interessante que nós que moramos aqui perdemos o encanto de tais belezas e nem a valorizamos. Da próxima vez que puder contemplar o rio valorizarei cada detalhe.

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    1. Ta aí uma coisa que sempre dei valor,prima, o rio, a natureza no Amazonas, mas isso só aumenta com o tempo e a saudade de casa ;-)

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  2. Só quem fica longe desse rio sabe o valor que ele tem. E nós que tivemos a sorte de crescermos banhadas por ele temos mais é que contempla-lo em toda sua magnitude, pois ele reflete o rosto de Deus.

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    1. É verdade, mana, somos pessoas abencoadas por termos vivido a infância no Amazonas! Essa é uma coisa que meus filhos sao tbm mt gratos, sabia? Acho lindo qd eles falam das experiências na nossa terra :-)

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    2. Lindo, assim como tudo o que você escreve, as vezes você se supera e esse está aquela sensibilidade a flor da pele. Fico imaginando cada cena, parece até que estou lá também, queria viver isso por pelo menis um dia!

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  3. Quando sinto saudade , venho ler as suas, e elas me consolam.

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